27 / 11: Um dia para entendermos
- Ocupa Palestra

- 29 de nov. de 2021
- 7 min de leitura
Por Matheus Pichonelli O paredão da torre 6 me permitia ver só metade da partida.
Metros abaixo, como num mundo paralelo, as crianças corriam em busca de uma bola com regras próprias que, do alto, eu tentava entender. A bola nem bola era. Era balão. Subia e descia numa partida que permitia chute, cabeçada e lançamento com a mão.
Tudo o que eu queria naquele dia era ser uma daquelas crianças. Correr num fim de tarde de sábado sem ter ideia do que passava na TV.

Ah, sim. A TV.
Ligada na sala ao lado, ela dava notícias do lado de lá. Uma partida que eu pagaria para não ver e/ou acabar logo. Se pudesse, fechava os olhos e só acordaria de noite, para saber do resultado e voltar a dormir. Como se fosse possível.
Dormir é luxo em uma semana de uma decisão da Libertadores.
Falava isso para meus amigos com o olho colado na TV em um apartamento onde eu me controlava para não botar para fora o que existe de pior em mim.
“Você tem certeza que quer que eu assista esse jogo com a sua família? Você sabe como eu fico em dia de jogo. Eu me transformo. Eu viro uma pessoa lamentável”.
O referendo do meu amigo vinha com um cálculo sem base na ciência e na racionalidade. Vimos juntos, pela TV, à final da Copa do Brasil, em 2015, e aos 3 a 0 contra River. “Temos que ver juntos esse se não não vamos ganhar”.
“Ver” o jogo é quase licença poética.
Faz tempo que eu não “vejo” futebol. O que faço é ficar andando pela casa, num ritual inconsciente, repetitivo e circular, em que até o toque na parede e o pé sobre pé precisam seguir um padrão.
Você não entenderia. A não ser que seja como eu. Como tantos.
Não fazia um minuto que o Raphael Veiga tinha aberto o placar e eu já me aboletava na janela esperando tudo acabar. Quanto tempo aquilo durou? Oito anos? Vinte?
Em vez do jogo em Montevidéu, fixava os olhos no jogo com as bexigas da quadra do prédio. Uma das crianças, com cabelo comprido, vestia a camisa do Palmeiras. Quantos anos deveria ter? Oito? Nove? Quanto tempo levaria para saber o que estava prestes a acontecer naquela tarde?
Nem eu nem ele saberemos tão cedo.
Entre tantos relatos de cores épicas da caminhada das torcidas até Montevidéu, a minha não poderia ser mais ordinária. Acordei, tomei café, fui para a natação, almoçamos no clube. Peguei a bicicleta e fui até o prédio do meu amigo. No caminho, parei numa farmácia para comprar uma máscara. Tinha esquecido a minha em casa.
Na rua, tudo estava tão calmo que parecia um dia normal. A diferença eram as rajadas de vento que faziam do meu estômago uma moradia já havia dois meses. Ou 39 anos. Vinham como uma descarga de estresse e ansiedade toda vez que me lembrava da final.
Um absurdo aquilo. Há quase quatro anos, prometi a mim mesmo que tiraria futebol da vida. Uma espécie de detox. Não fazia sentido o desperdício de alegria, tempo, atenção e afeto num dispositivo sobre o qual não tinha o menor controle a não ser gritar. Em dias de jogos, me fechava no quarto e desligava o celular. Só não conseguia ficar indiferente ao resultado. O pacto com a saúde mental era: se for pra sofrer, sofre depois. Não antes nem durante.
Mas, Palmeiras, por Deus, tentei te esquecer, e não deu. É de você que me lembro quando ouço músicas do tipo. Aquele papo de que paixão antiga sempre mexe com a gente, basta um encontro, um abraço e pronto. Começa tudo outra vez.
Um dia nos reencontramos. Reatamos. Voltamos à velha relação destrutiva, cheia de possessividades, e muito pior que antes.
“Você tem mesmo certeza que quer ver esse jogo comigo?”, eu repetia. Nessas horas não sou boa companhia. Nem para mim mesmo.
Na dúvida, melhor não deixar rastros nas redes. Nem das tristezas nem das alegrias. Demonstrações de tristezas e alegrias abrem campos gravitacionais, como num vórtice, para todo tipo de cobiça, inclusive a nossa ruína. Não tem santo que me convença de que, quando alguém faz questão de demonstrar o quanto despreza sua equipe -- aquela instituição que por alguma razão amamos como um familiar errôneo -- e toda a sua relação de amor e ódio com ela é sobre você que se está falando. É você que a pessoa despreza e julga lamentável. O futebol é só o escudo para não dizer isso com um mínimo de honestidade.
Dispenso. Me calo. Evito. A zica tem sono leve. E só espera uma brecha ou uma falha, como se fosse o seu caráter a mostrar vacilo ali em campo, para arremessarem na cara tudo o que pensam sobre você.
E então veio o empate.
Bem naquela hora, as crianças interromperam a partida que afastava meus olhos de onde meu corpo de fato estava, a 1.989 quilômetros dali.
Eu não mereço isso. Ninguém merece. Eu não sei se mereço. Não sei se merecemos.
Até que numa falha bizarra que só conferi no replay, o Deyverson, herói de 2018, correu alguns metros para atravessar o rubicão dos grandes personagens da história. Uma história de 107 anos. E que, enquanto as crianças interrompiam a brincadeira numa quadra qualquer de uma cidade qualquer, como tantas outras, começava a inaugurar a sua noite mais gloriosa.
O que o Palmeiras conseguiu no sábado, 27 de novembro de 2021, contra o Flamengo, ainda está prestes a ser compreendido. Não será hoje. Talvez amanhã. Talvez daqui um ano, quando alguém se lembrar que uma hora dessas estávamos... bem, eu estava quase o tempo todo com o rosto na janela, vendo crianças baterem bola num campo de visão que me permitia acessar só metade de uma quadra.
O que lembro são flashes, relances. Já no primeiro gol, uma bola tocada para traz e um tapa no fundo das redes, vi de novo a mesma reação, com o rosto assustado e os pés presos na defesa, do David Luiz. Parecia um replay de 2014. A diferença é que ele agora estava do outro lado.
Outra. Dudu, o ídolo máximo da reconstrução palmeirense pós-rebaixamento, em 2012, não estava na foto no dia da glória eterna, 30 de janeiro de 2021. Uma eternidade com data e hora para acabar. Bastava Andreas Pereira acertar o passe e seguir a jogada. Bastava aquela bola não entrar. Mas ela entrou. E deu ao Dudu, que já não estava em campo, a taça que faltava. E que agora fará companhia aos troféus de dois campeonatos brasileiros e uma Copa do Brasil.
O improvável, de novo.
Como 2015, em que perderíamos lá e cá com um arremedo de time diante de um dos melhores Santos já montados, Gabigol e Ricardo Oliveira à frente.
Como em 2016, do herói improvável Fabiano, numa bola que subiu para o céu e morreu na rede também num 27 de novembro. E 2018, com Deyverson, depois de um passe do William que garantiu o título e lhe custou uma temporada, com o ligamento rompido do joelho.
E 2020, disputado outro dia mesmo, já em 2021, e ainda tão fresco na memória pelo feito do mais improvável dos heróis. O que estava em campo era a disputa do cinturão. O direito de fechar o ano como campeão da América. E de lembrar do gol de Breno Lopes sem nenhuma imagem sobreposta de quem perdeu o reinado poucos meses depois.
Do gol em diante, lembrava de um certo 26 de junho de 2021. Um dia que não mereceu registro para quase ninguém. Naquele dia, cinco meses atrás, saía pela primeira vez de casa para passar algumas horas num hotel em Atibaia, presente para o filho que dias antes havia completado 8 anos.
Ele foi brincar no parque com a mãe e eu fiquei trancado no quarto num esquema hotel-office. Era dia de trabalho. Foi ele que me avisou que tinha acabado de pegar o elevador com um jogador do Palmeiras. Mandei passear, mas ele me mandou sair à janela para mostrar que falava sério.
Da sacada, vi uma van cheia de bolas com o selo SEP. Sociedade Esportiva Palmeiras. Será que o Sub-20 ou sub-algo estava treinando ali?
Na dúvida, deixei o trabalho e desci. O burburinho em volta do campo tirou qualquer dúvida. Porra, os caras estão no mesmo hotel que a gente. Por que diabos?
À medida que me aproximava do alambrado, já não ficava muito claro quem tinha oito anos, se pai ou filho. O time do coração faz isso com a gente. É como encontrar um herói de infância. Na idade que for, teremos sempre oito anos. “Pai, então aquele lá é o Breno Lopes?”.
Era um tempo em que o torcedor estava impedido, e com razão, de ver seus ídolos de perto nos estádios. Os jogos tristes sem vida nas arquibancadas.
Mas ali, por poucos minutos, pude ficar perto do time que, meses antes, havia me dado uma das grandes alegrias da vida. Uma ilha de alegria cercada por medo da morte, dos tempos da pandemia, por todos os lados.
Apontava um a um daquele elenco para meu filho. E naqueles poucos minutos pude ver num treino cansativo, sem graça mesmo, de saída de bola, o técnico Abel Ferreira gritando e repetindo a mesma estratégia como se já estivesse na hora do jogo. Do jogo mal me lembro. Uma derrota por 3 a 1 para o Bragantino, time da cidade vizinha — e que explicava a estadia ali.
Voltei para o quarto porque o trabalho esperava. Tinha combinado de participar de um programa ao vivo bem naquela hora. Quando terminei, corri para tomar café no saguão do hotel num conflito extremo entre a pessoa de 39 anos que tornei e a criança que fui um dia (e que um dia foi até o hotel onde o elenco se hospedava, em Araraquara, entregou as caricaturas de jogadores que desenhava obsessivamente, conseguiu uns autógrafos e depois VOMITOU na roda do ônibus do Palmeiras por não saber como lidar com a emoção).
Ridículo tietar os caras. Sou um adulto agora. Adulto não tem heróis. Não tem?
Num começo de tarde fria, tomei uma overdose de café num canto privilegiado por onde observava aqueles caras que só via pela TV interagindo entre eles sem qualquer mediação. Quem puxava a algazarra era o Deyverson, recém-integrado ao elenco. E que parecia falar por dez toda vez que acertava numa jogada de sinuca com os amigos Wesley e Gabriel Menino.
Eu olhava aqueles caras como olhava as crianças brincando numa quadra num sábado qualquer.
Um pouco por vergonha, outro por juízo pelas regras de distanciamento, não me apresentei a ninguém, não pedi fotos, não coletei autógrafos. Apenas disfarcei que era um menino de oito anos vendo o elenco ir e voltar das salas de almoço e da preleção.
Lá vem o Raphael Veiga, sério com seus fones de ouvido e a cabeça dentro do gorro.
Olha lá o Scarpa. Que livro estará lendo?
E esse Deyverson? Me fala se ele não parece aquele aluno pentelho no fundo da sala que vira e mexe a professora precisa mandar mais cedo para o intervalo.
As crianças de oito anos falavam entre elas, a certa distância, para não pagar de tiete e não soar ridículo.
Eles passavam, a gente assistia. Mentalmente desejávamos sorte, com gestos escondidos, como um padre que dá sua bênção. Em agradecimento pelos títulos recentes, e numa prece pelos que viriam.
Entre nós e eles, só os uniformes pareciam separar os deuses dos reles mortais. O que me prendia ali? O que tanto queria ver?
Cinco meses depois, já tenho um esboço de resposta. O que estava ali era a História.










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